Translate this Page

Rating: 2.0/5 (4 votos)




ONLINE
1




Partilhe esta Página


Início

Sentimentos de um psicólogo clínico

Publicado por 

 

Li uma vez em um livro que os terapeutas (nome genérico para psicólogos, psicoterapeutas, psicanalistas, psiquiatras) vivem, em média, sete anos a menos do que a população em geral. Infelizmente não me lembro do livro, nem sei se é um fato. A ideia era de que a vivência de ouvir e ajudar as pessoas acabava desgastando a própria saúde – física – do profissional, como se este precisasse de um adicional por insalubridade.

Como disse, não posso afirmar que é um dado, nem que a causa seja real. Porém, neste texto, gostaria de dizer sobre alguns dos aspectos internos de ser psicólogo, em especial, os sentimentos que acompanham o dia-a-dia de um psicólogo clínico.

Muitos tem me perguntando, no texto sobre Mercado de Trabalho para a psicologia, se alguém sensível poderia se formar em psicologia. O argumento subjacente seria de que a sensibilidade (chorar demais, se compadecer com o próximo) poderia ser prejudicial ao trabalho e, ainda mais, poderia impossibilitá-lo. Então, vamos lá, quais os sentimentos de um psicólogo?

A pessoa bem resolvida

Eu tenho um amigo que sempre que viajava de ônibus dizia, para a pessoa que sentava ao seu lado, que ele era contador ou bancário. Esta mentira branca deixava-o escapar de situações embaraçosas de dizer a verdade. Quando dizemos para a pessoa ao lado, em um ônibus, que vai nos acompanhar por 5, 6 horas de viagem, que somos psicólogos, podemos certamente esperar as seguintes reações:

 - A pessoa começa a contar todos os problemas de sua vida (um desabafo grátis);

- A pessoa começa a lhe perguntar como resolver as suas dificuldades de relacionamento amoroso (uma consulta amorosa grátis);

- A pessoa silencia (por acreditar que você poderá descobrir todos os seus segredos escondidos com tanto cuidado).

A última reação é rara. Embora pouco provável, acontece. Além de ver a possibilidade de desabafar, ter uma consulta grátis ou crer na mente do psicólogo como uma bola de cristal, as pessoas imaginam que você é uma pessoa bem resolvida, ou seja, tem todos os seus problemas resolvidos por toda a vida, já que fez psicologia.

Evidentemente, não é assim. Todos tem os seus problemas. A única – grande – diferença é que nós sabemos da importância e da eficácia da terapia e, por isso, frequentemente estamos fazendo terapia. Afinal, no dia-a-dia do consultório, temos que lidar não só com os nossos próprios sentimentos, mas com os sentimentos de outras pessoas.

Como um psicólogo se sente?

A dúvida que mencionei no início é bem interessante. Uma pessoa extremante sensível será uma boa profissional? 

Eu diria que não há como saber. Porém é certo que a própria faculdade de psicologia provoca mudanças. Com todas as teorias que aprendemos, conseguimos ter mais conhecimento sobre a nossa própria dinâmica interna, embora todo o conhecimento adquirido não substitua nem substituirá nunca a terapia ou a análise. Em certo sentido, arriscaria dizer que a faculdade de psicologia nos deixa um pouco mais “frios”. Um exemplo simples é comparar com um cirurgião. Ao fazer uma cirurgia, ele fará seu trabalho de forma técnica. Não irá chorar ou se emocionar com o problema do paciente. Do mesmo modo, aprendemos por teoria e prática (nos estágios) como lidar com a nossa emoção e com as dos outros.

 

Uma dúvida comum também é a respeito da possibilidade de autoanálise. Não é impossível, contudo não é indicada na maioria das vezes ou, no mínimo não é indicada no começo. Após começar sua própria análise, é possível analisar os próprios sonhos, intuir o que está por vir de mudança ou expressar para si o que há de errado. O único risco é de se auto-enganar, acreditando no progresso enquanto às vezes, se está parado. Em síntese, a terapia é sempre indicada ou, então, a supervisão.

Mas respondendo a pergunta deste sub-título, podemos pensar que um psicólogo ou uma psicóloga sente exatamente como todo mundo. Todos os sentimentos estão presentes e aparecerem hora ou outra. A impressão que passamos, de que somos bem resolvidos, ou tranquilos, ou pacíficos, ou equilibrados, vem com a persona da profissão, quer dizer, é como o hábito do monge.

Depois do expediente, cada um tem a sua vida e a grande questão é saber lidar com tudo o que se ouve e se escuta dentro do consultório. Pois a experiência é incrivelmente única: ter acesso aos pensamentos, sentimentos, crenças, desejos de centenas de milhares de pessoas e utilizar o conteúdo que ali aparece para que o sujeito possa se autoconhecer e encontrar seu caminho. Tendo acesso a todo este conteúdo e, ao mesmo tempo, tendo o contrato de sigilo com o paciente (que diz que tudo o que for dito permanecerá em sigilo), a experiência é a de vivenciar mil vidas em um dia – por compartilhar da vida secreta do outro – e, simultaneamente, estar sempre sozinho e silente sobre o que se escuta.

Que sentimentos surgem desta atividade única?

No momento da consulta, realmente temos que criar empatia e distanciamento. Pode parecer contraditório e é. A empatia leva à compaixão, ao estar junto, à escuta atenta e o distanciamento faz com que não haja contaminação psíquica, com que não vivamos o que o paciente está vivendo ou, o contrário, repudiemos o que ele ou ela traz. Este distanciamento, muitas vezes, porém, é temporário e o que tinha ficado guardado reaparece tempos depois e é necessário ficar consciente de toda a tristeza, angústia, sentimento de inadequação ou estranheza que é antes do outro do que de si.

A verdade é que é difícil ficar isento de tudo o que se escuta, ficar alheio ao sofrimento humano. Alguns se defendem – como muitos psicanalistas – sendo irônicos, sarcásticos ou pessimistas, o que demonstra que a clínica não é para qualquer um.

Ouvimos muito frases como: “como você aguenta ouvir tantos problemas” ou “deve ser difícil pegar casos complicados ou bizarros, não é mesmo?” ou “eu não teria paciência e diria logo umas poucas e boas…”

Como disse, a clínica não é para qualquer um. Para quem quer fazer psicologia, existem outras colocações profissionais além da clínica. O que quero dizer é que, se por um lado o dia-a-dia pode ser pesado ou tenso (alguns dias), a paixão de quem gosta da área é pela mudança. Um boa definição do que fazemos é ser um agente de mudança. Mudanças pequenas ou grandes, caso a caso, nos motivam de novo e de novo.

Outro aspecto fantástico é ver tão de perto a individualidade… nunca deixo de me impressionar como as pessoas são diferentes! Nenhuma teoria consegue abarcar este fato e, se estivermos abertos, poderemos partilhar da riqueza única que o ser humano tem, e muitas vezes, esconde.

O que um psicólogo clínico sente? Tudo, pois está sujeito a ver tudo, escutar de tudo, sentir tudo (e guardar para si), ou seja, sentir nada, mostrar pouco, ser para si. Como no poema de Fernando Pessoa: “tenho em mim todos os sonhos do mundo”